Bando de Teatro Olodum discute
abuso policial e violação dos direitos humanos
Agressão ao ator Sérgio Laurentino revolta comunidade e mobiliza discussão sobre os ataques à cidadania sofridos diariamente pela juventude negra de Salvador


No dia 06 de fevereiro, domingo de Carnaval, o jovem Sérgio Luís Laurentino, ator do Bando de Teatro Olodum, foi agredido brutalmente por um integrante da Policia Mista (união do Exército, Marinha e Aeronáutica que, inexplicavelmente, atua no Carnaval). O crime seguiu todas as práticas de violação à cidadania já constante no cotidiano de Salvador e que atinge principalmente os jovens negros da periferia da cidade (brutalidade, inexistência de diálogo, prisão arbitrária, e mais humilhação na delegacia, incomunicabilidade etc.). Contudo, o Bando de Teatro Olodum que há 15 anos se dispõe a ser uma voz indignada contra essas arbitrariedades, mais uma vez não se manteve inerte. Cancelou as apresentações do Cabaré da Raça, que comemoraria os 15 anos do grupo (comemorar o que num momento como esse?) e organizou, nesta segunda-feira (28), às 19h, mais um Fala Vila, um debate no espaço do teatro, com o tema "Quem sustenta a violência? Quem a alimenta?". Várias entidades envolvidas direta ou indiretamente com o episódio foram convidadas. E todos os cidadãos e cidadãs da cidade intrinsecamente acometidos por esta situação foram convocados. Muitas instituições, como era previsível não mandaram nenhum representante: a Polícia Militar, a Emtursa, a Central do Carnaval etc. Os mais interessados em buscar resposta para esse estado de violência estavam lá: jovens negros da periferia da cidade, freqüentadores do Vila, representante das diversas entidades do movimento negro e social, alguns parlamentares, o diretor do sindicato dos policiais civis, o secretário e o subsecretário da reparação, entre outros.

O tema principal da discussão seria o caso Sérgio Laurentino. Seria, se os jornais desta segunda-feira não estampassem a tragédia do final de semana: Salvador teve as 24h mais sangrentas do ano, 19 execuções, muitas ainda não reconhecidas. Uma tragédia anunciada, pois, com a morte de quatro policiais militares na semana passada, toda a cidade, pelo menos a cidade negra, já esperava a vingança.

A promotora Itana Viana, do Ministério Público Estadual, informou algo que todos já deveriam saber, porém que muitos fingem desconhecer: não há no Código Penal brasileiro nenhuma pena de execração física ou moral, ou seja, nenhum criminoso, por mais vil que seja, não pode ser punido com humilhações ou porrada. A dramaturga e advogada Aninha Franco acrescentou detalhes à informação. "A única constituição brasileira que previa a punição física era a de 1824, que foi a primeira". Então, as formas de tratamento dado pelos policiais a qualquer pessoa presa na rua, no Carnaval ou qualquer evento, com força bruta, gritos e muita humilhação É CRIME. Apesar de contar, muitas vezes com o apoio popular, é desumano e inconstitucional.

Racismo institucional
Se não fossem as páginas dos jornais desta segunda, os presentes discutiriam o caso Laurentino e a violência policial no Carnaval, como casos isolados. Como se realmente houvesse uma violência policial específica no Carnaval, e não uma repetição das agressões diárias cometidas contra os jovens negros da periferia, afinal, como bem definiu o professor Samuel Vida, "O Carnaval é a reprodução concentrada das nossas práticas cotidianas. O cordeiro não é uma invenção do Carnaval. São os mesmos trabalhadores informais que passam o ano inteiro realizando trabalhos serviçais e com baixa remuneração, sendo humilhados e agredidos. Assim também, a violência policial não se resume aos dias do Carnaval. A violência, em nossa sociedade, é estrutural e está associada à violência racial". Todos na platéia já sentiram ou viram, na prática, a violência da qual Samuel Vida falava. Todos, os negros, por serem negros e moradores da periferia, e os poucos brancos presentes, por serem políticos ou militante do movimento social, que conhecem bem a atuação policial como aparelho repressor do Estado.

"A violência maior é do Estado, que se utiliza do braço armado, que é a polícia para cometer violência. É muito fácil culpar os policias. Para o Estado é cômodo deixar que policiais ajam com arbitrariedade e sejam apontados como únicos culpados", alertou o diretor do SINDIPOC, Marcos Souza, que fez questão de informar aos presentes alguns dados da vida árdua dos policias, com péssimos treinamentos, baixos salários e muita pressão no ambiente de trabalho.

Se a culpa por tanta violência contra a juventude negra não é somente do policial cabe muito bem a pergunta feita por Aninha Franco "Quem dá ordens aos policiais não é um comandante nomeado pelo Governador do Estado? O responsável, então, é o Governador? Estou apenas perguntando".

Nesse sentido, o subsecretário municipal da reparação, Elias Sampaio explicou um conceito que vem sendo trabalhado, nos últimos anos, pelos que lutam contra todas as formas de discriminação e pelo respeito aos direitos humanos, a idéia de racismo institucional, como o fracasso das instituições e organizações em preparar seus funcionários para oferecer serviços de qualidade independente da cor, etnia ou origem racial. A discussão sobre o racismo institucional começou em Londres, em 1999, a partir da morte brutal do jovem negro, Stephen Lawnrence, que deu origem ao extenso inquérito, de seis anos, sobre a ineficácia da Polícia Britânica em prover um tratamento adequado, e que teve em sua sentença a condenação de todo sistema policial britânico como responsável por essa morte, já que este não preparou bem seus funcionários. O caso Stephen Lawnrence tem semelhanças com a agressão ao ator Sérgio Luís Laurentino, com o mesmo despreparo dos órgãos militares em lidar com o fato.

Denuncie
O professor Fernando Conceição lembrou do tráfico de drogas que vem incentivando a violência em comunidades carentes como o Calabar. "Esse tráfico é alimentado por muitos de nós que visitam esses bairros, com nossos carros, diuturnamente, em busca de cocaína e maconha, acirrando a rixa entre gangues rivais e instalando a violência", alertou Conceição, cobrando um posicionamento do prefeito João Henrique que, segundo ele, deve exigir explicações do governador do Estado, o responsável pela segurança pública da cidade.

A platéia ouviu outros relatos de abuso de poder policial, como o do ator negro Ângelo Flávio, agredido no Pelourinho e de uma estudante espancada por tentar defender um inocente.

O secretário municipal da reparação, Gilmar Santiago, chamou atenção para a importância do Conselho Municipal dos Direitos Humanos sancionado pelo prefeito João Henrique na semana passada que, em um mês, estará funcionando, recebendo denúncias de violação à cidadania e acompanhando os inquéritos e as punições dos culpados.

A conclusão mais importante a que todos chegaram foi a necessidade de informações, para que toda a juventude negra desta cidade esteja preparada para situações como essa, em que sua condição de cidadão é ameaçada por policiais que se utilizam da farda para espalhar o medo e a violência. Todo cidadão e cidadã desta cidade deve conhecer os seus direitos, e como se dirigir aos criminosos fardados. Assim como recebemos inúmeras recomendações contra assaltos e outras ações de marginais, precisamos estar precavidos para possíveis abordagens brutais da PM. Já é consenso que revidar à agressão não é a melhor saída, além de inverter a condição de vítima para agressor. São muitas as organizações que podem e devem ser contactadas no momento da agressão, como o Disk racismo, a Anaad e o escritório Aganjú. Essas informações devem ser repassadas a todos, principalmente nos bairros mais carentes. Não podemos permitir que essas ameaças ao estado de direito continuem e, como um amigo de Sérgio Laurentino disse ter aprendido com o ator, não podemos ser tolerantes com a intolerância.

Salvador, 28 de fevereiro de 2005, André Luís Santana

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