CRÍTICA TEATRAL

A dramaturgia étnica da Companhia dos Comuns
Peça sobre origens africanas fica no limite do panfletário

Macksen Luiz - Folha de S.Paulo
[01/OUT/2005]

Com Bakulo - Os bem lembrados, a Companhia dos Comuns retoma o ciclo de espetáculos sobre as origens africanas do negro brasileiro, já exploradas em A roda do mundo e Candaces. Nesta trilogia encenada pelo grupo de atores negros investigam-se os fundamentos de uma cultura e as relações decorrentes de contradições sociais e históricas. Há coerência estilística e segmentação cultural na companhia, que a cada montagem se solidifica no depuramento de meios e no ajuste da dramaturgia.

Se em Roda do mundo se enfatizava a condição social do negro, num quadro expositivo, quase naturalista, e com caráter de denúncia, em Candaces remete-se ao divinal para estabelecer a construção mítica do mundo. Já Bakulo procura integrar os dois planos, com ênfase maior nas próprias dificuldades da comunidade negra em conviver com o preconceito e a exclusão. A perspectiva agora se desvia para as suas entranhas e vivências, o conflito na convivência da ascensão social com as origens.

Tal como em Roda do mundo, Bakulo pode ser considerado um agit-prop (agitação e propaganda), forma de encenação que se propõe, diretamente, a instigar e divulgar determinada idéia. Para tanto, o grupo selecionou alguns textos do geógrafo Milton Santos para estabelecer contexto para aquilo que está sendo apresentado, textos que são lidos diante de microfones, como informes de um quadro social. Por outro lado, a narrativa assume a função de apontar ''causas'' dos problemas, sem qualquer intermediação de metáforas ou de artifícios para encobrir nomes e instituições.

As histórias paralelas, já que se pretende painel mais amplo e didático ligado ao contexto geral, procuram discutir as questões propostas através de cenas realistas. O líder comunitário e o irmão, o casal de classe média, ele postulante a cineasta, ela professora universitária, são os veículos para a auto-reflexão social e política.

Mas as informações mais diretas, explícitas, ressurgem a todo instante, induzindo à ação. Muitas vezes isso funciona, outras torna-se acentuadamente panfletário. Quando se buscam as referências ancestrais, apontadas como possibilidade de resistência cultural e mudanças sociais, esse tom impositivo arrefece e se desenham nuanças numa narrativa que se configura mais monolítica do que flexível.

Márcio Meirelles fragmenta o roteiro, com cortes bruscos, cenas contrastadas, uso constante do microfone e muita música. Essa pulverização contribui para flexibilizar o texto, num relativo desmonte da rigidez das ''mensagens''. O diretor cria, com a simplicidade da cenografia, os sugestivos figurinos de Biza Vianna e a coreografia de Zebrinha, imagens de efeito, para as quais contribui a luz de Jorginho de Carvalho.

A direção musical de Jarbas Bittencourt valoriza as vozes dos atores, bem preparadas por Agnes Moço e Carolina Futuro e o grupo de músicos: Alanzinho Rocha, Filipe Juliano, Frida Maurine, Gláucia Brum e Rocino. A cena inicial, com os atores sobre pedestais, como deuses humanos de uma celebração entre a ancestralidade e o contemporâneo, pode ser vista como a síntese das tentativas de encontrar expressão original para uma dramaturgia étnica. A montagem é envolvente, mas parece se quebrar quando o caráter de agit-prop ameaça deixar a cena menos filigranada.

O elenco - Cridemar Aquino, Débora Almeida, Fábio Negret, Gustavo Melo, Hilton Cobra, Rodrigo dos Santos, Tatiana Tibúrcio, Valéria Mona e Vânia Massari - demonstra aprimoramento em relação às montagens anteriores do grupo, com atuações harmoniosas que se enquadram nas múltiplas exigências da direção.

Bakulo - Os bem lembrados. Texto de Marcio Meirelles e Cia dos Comuns. Com a Cia dos Comuns. Teatro Nelson Rodrigues. Av. Chile, 230, Centro.

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