Qual o corpo da violência?

A pergunta permeia a mesa-redonda que acontece hoje, no Teatro Vila Velha

Correio da Bahia, 17/04/08
Joceval Santana

Trezentos presos tiraram suas camisas, seguraram-nas fora das celas e saudaram os seus companheiros de regime fechado, que chegavam de uma apresentação de dança num importante teatro da cidade. O detalhe: eram eles os bailarinos. “Foi a passagem da chacota para o respeito”, lembra a dançarina e psicóloga Myrna Maracajá, 32 anos, responsável pelo espetáculo e pela área de dança de uma iniciativa desenvolvida com presidiários na capital João Pessoa, Paraíba. Hoje, sua mãe, Eneida, que idealizou o projeto, cruza episódios e reflexões na mesa-redonda Corpo, Violência e Arte, que acontece no Teatro Vila Velha (Passeio Público/Campo Grande), às 19h, com entrada franca.

Ao seu lado, vai estar a bailarina baiana Márcia Mignac, 37 anos, que fala sobre sua experiência com jovens que sofreram abuso sexual, tendo como base a dança do ventre. A discussão integra o Mês da Dança no Vila, promovido pelo Viladança, e que se soma a uma vasta programação na cidade, envolvendo apresentações, debates, workshops e intervenções em alguns espaços. A mesa-redonda de hoje é uma iniciativa mais que legítima. É necessária. Afinal, convivemos com índices de violência em níveis catastróficos, iguais – quando não superiores – a de países em conflito. O tema, portanto, penetra nos espetáculos, impõe ações artístico-políticas e reflexões.

Márcia Mignac, por exemplo, diz que “estamos construindo um espaço de conhecimento”. Ela passou seis anos ensinando dança do ventre a adolescentes (12 a 18 anos) vítimas de violência sexual. Agora, como bolsista da Fapesb, revisita as jovens, colhendo depoimentos para a sua dissertação de mestrado na Escola de Dança da Ufba e, quem sabe, dar continuidade ao trabalho, suspenso em 2006. Um trabalho pioneiro e, sob certo viés, subversivo. Primeiro porque usa uma forma de expressão de caráter sensual e, mais além, vista como sexista, à medida que praticada por mulheres para agradar aos homens. Não seria estranho aplicar a dança do ventre a jovens abusadas sexualmente?

“Não trabalhamos com a objetização da mulher. A dança entra como uma forma de reorganização das informações que estão na região dos quadris. É uma intervenção sobre outra intervenção, cuja intenção é rever a convivência (com o abuso)”, propõe Mignac, com 15 anos de dança do ventre. Ela também aponta que sua iniciativa vai de encontro a outras terapias que separam mente e corpo e se concentram mais na superação psicológica do trauma. “Entendemos o corpo como lugar de ressignificação. De atualização e reorganização da violência sofrida”, compara a dançarina.

A iniciativa subverte, portanto, a própria idéia de superação. “A ‘reparação’ não vai acontecer nunca. Elas vão aprender a rever as imposições da violência”, acredita a pesquisadora. E os depoimentos reiteram. A adolescente M.N., que participou do projeto, deu seu testemunho este ano: “A dança trabalha o abuso, esse registro que tinha dentro de mim, que não era legal. Faz com que eu aprenda a cuidar disso. Aprenda a conviver com isso no meu corpo, porque é uma coisa que eu não vou esquecer nunca. Eu vou superar. Eu vou superar desse jeito, aprendendo a conviver. O corpo modifica com a dança”.

Atrás das grades – Para a paraibana Myrna Maracajá, o projeto Cultura no Presídio ajudou muitos detentos a entender que eles fazem parte de uma conjuntura e abandonar o pensamento de que são ruins ou maus “por natureza”. Há dez anos – e atualmente suspensa, adivinhe, por falta de verba –, a iniciativa desenvolve trabalhos nas áreas de artes visuais, teatro, literatura, música e dança com presos em João Pessoa. E a dança ocupa um espaço singular. “São corpos que vivem num espaço prisional, disciplinar, rígido, que sofrem castigo e punições”, contextualiza Myrna.

Ela ainda destaca que a rigidez vem reforçada pelo conhecido machismo paraibano, que limita as formas de expressão gestual e de toque. Por isso, decidiu trabalhar com o dia-a-dia dos próprios presidiários, no que chamou de “dança do existencial”. “Toda a movimentação é baseada na existência deles, no que eles têm a dizer”, explica. A mãe e mentora, Eneida Maracajá, lembra que “ser preso é não ter voz ativa”, verbal ou não-verbal. O depoimento de um preso registrado na produção literária do projeto compara a cela a uma sepultura e ele mesmo, a um morto-vivo.


Assim, a mesa-redonda Corpo, Violência e Arte discute os efeitos no corpo de atos de coação em dois lados de uma mesma moeda – e, por extensão, a sombra deles no nosso cotidiano. Aliás, uma boa maneira de dar continuidade à reflexão é assistir ao espetáculo José Ulisses da Silva, que o Viladança apresenta amanhã, às 21h, no mesmo lugar. A criação de Cristina Castro faz uma releitura contemporânea da Odisséia, de Homero, e leva o herói Ulisses para as ruas. Chama atenção, na coreografia, um “discurso” que enfatiza a prontidão dos corpos, em episódios onde a violência sobretudo – mas, também, a possibilidade do afeto – pode vir de qualquer lado.


http://www.correiodabahia.com.br/folhadabahia/noticia_impressao.asp?codigo=151765

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