Cine Vila recebe cineasta José Araripe Jr. para exibição de Esses Moços

Cena do filme Esses Moços, de José Araripe Jr.
 
Na próxima segunda, dia 24, às 19h, o Cine Vila recebe o diretor José Araripe Jr. para a exibição do filme "Esses Moços". O longa narra a história de Darlene, uma menina que vive nas ruas de Salvador e traz para capital a irmã menor, Daiane, para viverem como pedintes na região do Comércio. Juntas encontram Diomedes, um senhor que foi agredido e está desmemoriado. Misterioso e afável, Diomedes conduz as meninas através da estrada de ferro para o seu mundo de desmemórias, onde inocência e dor compõem a música do tempo.

Leia abaixo, entrevista com o cineasta José Araripe Jr., sobre o filme.

Por que Esses Moços?

Há alguns anos, eu estava em Recife fazendo uma série de programas para TV e resolvi dá uma relaxada inventando uma nova história para um filme. Com certeza, o que me faz ser cineasta é a paixão por inventar e contar histórias. Eu me lembrei de um personagem chamado Diomedes que já existia numa pequena cena de outro roteiro meu chamado Menino de Circo. Saquei Diomedes de lá e trouxe para uma história sua, completa. Meu avô Alencar que morreu com 100 anos, foi a inspiração principal. Ele, nos seus últimos 15 anos vivia suas desmemórias de um portador de Alzheimer, mas me impressionava alguns fatos que eu via, como em alguns momentos, quando reencontrava amigos da mesma idade e a memória voltava, fresca. Era o mesmo homem em dois tempos diferentes.
O Diomedes de Esses Moços traz tudo isso, e é misterioso, - pois, abandonado depois de ser agredido - é adotado por duas meninas, recém chegadas do interior, para viver nas ruas da Cidade Baixa, em Salvador. A música de Lupicínio Rodrigues foi outra inspiração, sensorial, inconsciente - ela sempre esteve no meu imaginário e resolvi seguir esta intuição de que tinha à ver com o personagem, e aos poucos fui descobrindo que Diomedes era um músico...

Como se dá essa narrativa?

Esses Moços é uma fábula urbana contemporânea, um street movie, que nos leva com os três personagens por uma cidade esquecida e abandonada. A cidade também é um personagem que tem memória e sofre com suas desmemorias. A estrada de Ferro é um fio condutor que vai nos apresentando à cidade e ao passado e o presente de Diomedes. A menina maior Darlene, percebe que o velho pode ser útil para pedir esmolas. Assim eles reproduzem toda uma cultura, à que foram submetida nas suas vidas de órfãs. A menina menor, Daiane, menos experiente nas ruas, vê em Diomedes o avô que nunca teve. Elas estabelecem uma sintonia onde a música vai ser o médium da linguagem afetiva.

Você que vem de três comédias, porque um drama?


No fundo, os meus filmes sempre tratam do mesmo assunto: a luta dos artistas para encontrarem seus espaços de dignidade e trabalho. Assim foi em Mr. Abrakadabra! , onde um mágico encontra um jovem aprendiz; em Rádio Gogó quando um radialista pirata cria seus próprios modelos de narração e transmissão e em O Pai do Rock que narra as aventuras de uma banda de rock fazendo um pacto com os demônios da indústria para fazer sucesso. Poder transitar em gêneros diferentes é um dos meus prazeres na atividade de escrever e filmar. O drama Esses Moços é pontuado por situações poéticas e de humor, que através de situações inusitadas e conflitos sociais e culturais tanto no podem levar às lagrimas como ao riso.

Como foi trabalhar com equipe e elenco locais?


Todo projeto de fazer cinema em Salvador passa por essa formação de pessoas. Estamos trabalhando, procurando sintonia com a comunidade artística do teatro, da música, das artes plásticas, com os profissionais do audiovisual. Ampliar a união profissional só nos fortalece. E hoje sabemos que temos profissionais competentes que podem fazer cinema em qualquer parte do mundo. Talentos com Hamilton Oliveira na Fotografia, Beto Neves na Direção Musical, Gilson Rodrigues na direção de Arte proporciona ao filme um padrão técnico e artístico que orgulha a todos nós nordestinos.

Esses moços é um filme tipicamente nordestino?


A cor local e os elementos do imaginário nordestino estão presentes o tempo todo. Esses Moços é um filme nordestino porque se propõe a captar um pouco dessas identidades e singularidades que fazem do nosso homem um lutador, que sempre usa a arte para refletir e repensar o mundo que nos cerca e nos oprime. O espírito criativo desses brasileiros que vivem driblando as dificuldades e enfrentando preconceitos de toda uma nação, está inscrito no perfil desses personagens que vão além da carência aparente, e resgatam certa ternura e bucolismo presente nos subúrbios.

E o elenco principal, com você chegou a ele?


Inaldo Santana é um ator do teatro baiano que sempre chamou atenção em pequenos papéis em filmes de Edgard Navarro, de Sérgio Machado, Walter Salles, entre outros. Convidá-lo para interpretar Diomedes foi uma conseqüência da nossa opção pelos locais. Ele tem o biótipo e uma aura de dignidade sofrida que o personagem pedia. Ele é um ator de muitos recursos e tem raízes populares como Diomedes. Não foi difícil decidir por ele. As meninas Chaeynd e Flaviana, foram garimpadas entre mais de 300 testes. Na primeira vez que assistí a fita de testes, imediatamente as duas se destacaram e me conquistaram. E para minha sorte já tinham experiência com teatro, e inacreditável: elas eram amigas de infância e vizinhas no mesmo bairro. Coincidentemente de um subúrbio onde parte do filme acontece. Três profissionais talentosos e bem dedicados, que encontraram a química proposta pelo filme. Os outros atores vieram da grande oferta que o teatro em Salvador hoje proporciona. Alguns foram testados, outros convidados e outros não-atores incorporados à partir de encontros afetivos na fase de locação.

Como se deu o processo de escritura do roteiro?


A partir do primeiro argumento escrito em Recife, eu resolvi enfrentar a maratona de escrever umas 80 páginas de roteiro. A primeira versão acabou ficando bem presente na versão final. Mas foram idas e vindas, numa jornada de seis ou sete versões, quando contei com a colaboração dos roteiristas Hilton Lacerda - talentoso roteirista e cineasta do Recife; do escritor jornalista Ricardo Soares e do publicitário Victor Mascarenhas. Um processo à oito mãos que me possibilitou encarar a versão final usando o melhor de todas elas. Em um processo com colaboradores, chegar à versão final é sempre muito difícil, pois há o momento pessoal de optar pelo ethos da história e assumir suas implicações ideológicas, já que tratá-se de uma obra de nítida abordagem social. O próprio modus operandis de filmar nas ruas e seus obstáculos me obrigou a reescrever seqüências inteiras, no set, em nome de soluções de tempo, clima, locação e situações inesperadas. Sem dúvida que escrever com colaboradores enriquece sobremaneira o roteiro.

Como se desenhou a direção de arte?

Eu venho da direção de arte no cinema, é uma área que em fui pioneiro em Salvador. Por isso tenho procurado em meus filmes convidar artistas que admiro o estilo e a forma de trabalhar. Já havia trabalhado com Gilson Rodrigues no Teatro de Cordel, ele é um experiente artista plástico e cenógrafo, e também figurinista. Combinamos de encontrar um equilíbrio entre as paletas escolhidas – sempre tínhamos uma paleta padrão e isso tinha a ver com o conceito da cena, a textura da locação e a progressão da narrativa. Gilson é também um ágil cenotécnico e produtor de arte, que mergulha de corpo e alma do trabalho. Assina também os figurinos realizado à partir de reciclagem.

É um filme onde a direção de fotografia se destaca?

Com certeza, sim. Hamilton Oliveira foi parceiro de outros filmes, ele é minucioso e perfeccionista. E para Esses Moços optamos por um cromatismo suave que envolve e aconchega como a história pede. As temperaturas então suaves e ajudam construir um clima subjetivo fundamental para a narrativa. A maior parte do filme acontece na rua, há grandes espaços e grandiloquentes paisagens, onde é possível perceber uma harmonia com a direção de arte que permeia todo o filme.

Trata-se de uma história sobre música, e com a trilha foi construída?

A versão de Gilberto Gil para esse clássico de Lupicínio Rodrigues, tocando um violão e acompanhado pela flauta de Tuzé de Abreu parece ter sido feita para um dia embalar essa fábula.
Um filme em que a música também é protagonista ao ponto de ser o título do filme, é aparentemente simples, mas acaba tornando-se complicado. Aliás, acho que o som e a música, fazem parte de um estágio em que precisamos evoluir muito. Culturalmente esses itens na produção de um filme, se encontram sempre em segundo plano. O músico Beto Neves partiu de um desenho que o próprio roteiro já pedia e realizou um trabalho de misturar algumas referências mais históricas e experimentais como Smetack à uma música original, e sentimental do personagem principal, somadas à canções temáticas desenvolvidas para os três personagens. No filme a música existe como co-narrador e vai cumprindo seu papel de nos lembrar que estamos vivendo uma ficção próxima da realidade, mas que trata-se o tempo inteiro de um espetáculo artístico, e ela está lá para pontuar, reforçar e emocionar. Duas presenças especiais na trilha; Jorge Alfredo com o tema de Diomedes e Rebeca Matta – uma cantora e compositora baiana que transcende emoções - fechando o filme com um belíssima canção.

Nestes tempos do digital e do transfer, qual o papel da montagem no filme?


Eternamente a montagem será o grande momento artesanal do filme, independente de computador ou moviola. O computador, sem dúvida agiliza e permite múltiplas versões – o que às vezes pode ser um complicador. Em Esses Moços eu trabalhei com Jefferson Cysneiros, parceiro de outros filmes. Ele é um jovem e experiente montador que se destaca por uma extrema sensibilidade e inteligência aliados à uma percepção de ritmo que em obras musicais com essa é o leite e o pão. Sei sempre o que quero a partir do roteiro e do copião, mas confio no talento do especialista, o que só traz lucro para o filme. Temos uma montagem sem sobressaltos, que flui com pequenas elipses, com alguns rompantes de ritmo, que pontuam principalmente o núcleo da gang do Piolho. O grande mérito de toda a montagem é parecer invisível.


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