Apesar dos caracóis

Foto: João Millet Meirelles



A partir de “Espelho para Cegos”, montagem do Teatro dos Novos, do Teatro Vila Velha

Por Daniel Guerra

Digamos que a recente prisão de Lula fosse encenada por Zé Celso e o Teatro Oficina. A peça escolhida para fazer de alegoria ao acontecimento histórico mais marcante do último mês poderia bem ser uma remontagem de As Bacantes, de Eurípedes. Capturado à força pela armada do rei Penteu, Dionísio - o deus banido que trouxe o delírio, o gozo e a liberdade às proto-feministas áticas - é finalmente levado preso ao porão de um castelo. Mas é conduzido até lá com um estranho sorriso estampado no rosto. Até aí, Penteu não entende nada daquele sarcasmo. Mas eis que à noite acontece a grande revelação: Dionísio se transforma num enorme touro de fogo e destrói as muralhas da prisão. Sai dali voando. Zé Celso, provavelmente, botaria o juíz Sérgio Moro no lugar de Penteu e o ex-presidente Lula no de Dionísio.

Assim como de deus degradado passa-se a animal mítico superpoderoso, o homem Lula, assim como proferido pelo próprio e reproduzido pelos microfones, celulares e câmeras, torna-se, agora, uma ideia. 

Em todo imaginário político, transformar-se em ideia é sempre transformar-se em algo mais forte. De repente aquele corpo torna-se um corpo-sem-órgãos. Suas partes se espalham pela multidão. Antropofagizado, Lula torna-se todos os corpos presentes, unidos e pactuados na unidade de uma luta performada.

Mas quando Lula transforma-se numa ideia, diferentemente de transformar-se num touro de fogo ou algo que o valha, transforma-se também numa informação. Foi assim que no programa Fantástico de domingo, os dois apresentadores passaram tanto tempo descrevendo onde ficaria encarcerada aquela ideia. Apresentaram a sua cela numa animação 3D: um apartamento minúsculo, possuindo o bastante para as suas necessidades. A ideia, afinal, precisa dormir, caminhar, comer, ler alguma coisa, cagar, mijar e tomar banho. Em um site, cheguei a me deparar com a espantosa notícia: “Lula não precisará raspar o cabelo e nem cortar a barba”. 

O homem-ideia apareceu em jornais do mundo inteiro, pintado de muitas maneiras. Numa das fotos mais compartilhadas na timeline progressista (a minha, diga-se de passagem), Lula é visto de cima, carregado nos braços de uma multidão vermelha. Tudo parece um furacão autônomo e poderoso, e a foto, tirada provavelmente por algum Peter Parker, deve ter sido replicada por milhões de pessoas mundo afora.

No meu WhatsApp, mensagens com artigos confrontando visões. Dois jornais postos em cima de uma mesa: a manchete d’O Globo trazia em caixa alta: “LULA PRESO”. Aqui o homem-ideia chega indigente, criminoso, levado por uma turba de jornalistas e militantes para algum lugar, que a julgar pelo título, só poderia ser as portas da prisão. A foto é tirada de um ângulo estranho, enviesado, que torna o homem-ideia mais velho, mais cansado, e, principalmente, mais sofrido. Os flashs brancos das câmeras ajudam na degradação geral. Já no Jornal do Brasil, vemos a ideia encarada de frente, carregada nos ombros de alguém. Com as mãos, segura as mãos do povo, em sinal de coragem para o que há de vir. Aqui já temos um horizonte. Há algum céu, mesmo que nublado. Mas o que importa são as gloriosas bandeiras vermelhas atravessando a imagem. A ideia sorri. A manchete “Lula se entrega” me faz relembrar o sorriso enigmático de Dionísio sob o jugo de Penteu. 

De fato, uma ideia carrega a promessa da eternidade. Disso já sabiam os egípcios e os platônicos. Che Guevara sobrevive em camisas e no imaginário popular. Não por coincidência, reapareceu muitas vezes, em muitas dessas imagens produzidas durante a semana. 

Uma ideia também pode agregar, finalmente, posições da esquerda até agora conflitantes. Em torno da ideia de luta, unem-se, num lapso incrivelmente curto de tempo, a esquerda progressista, a anarquista, a social-democrata, a socialista, a comunista, etc. 

Mas, para além da escassez de provas contra Lula e do hiperpunitivismo latente na sociedade policialesca que temos encarado nos últimos tempos, e para além das reais transformações sociais ocorridas durante o período em que o PT esteve no poder, advém, ainda assim, o recado de um certo longíquo francês, escrito no livro A Sociedade do Espetáculo. Nos fala Guy Debord: “Os pseudoacontecimentos que se sucedem na dramatização espetacular não foram vividos por aqueles que lhe assistem; além disso, perdem-se na inflação de sua substituição precipitada, a cada pulsão do mecanismo espetacular.

Com esse livro, o pensador ativista, que viveu fervorosamente a Paris de 68, nos coloca na posição de espectadores. Então nos pergunto: qual a nossa posição frente a tais espetáculos? E principalmente: que tipo de espectadores somos ou deveríamos ser?

Não pergunto a todos, a uma massa anônima em geral, não pergunto a um coletivo de pessoas, nem a um movimento político em particular. Pergunto a cada um de vocês. De novo Debord: “(…) o que foi realmente vivido não tem relação com o tempo irreversível oficial da sociedade e está em oposição direta ao ritmo pseudocíclico do subproduto consumível desse tempo. Esse vivido individual da vida cotidiana separada fica sem linguagem, sem conceito, sem acesso crítico ao seu próprio passado, não registrado em lugar algum”.

Tudo tenderia, portanto, a deixar o sujeito-cidadão contemporâneo cego, surdo, mudo e esquizofrênico frente ao frenesi das informações, pseudotransformações e “pseudoacontecimentos” políticos. Mas os limites que definem o espaço íntimo e o espaço público são demasiado frágeis. Desde 2013, pelo menos, vemos que o campo público brasileiro tem invadido o nosso íntimo de maneiras terríveis e absurdas. O vampirismo de Temer não é apenas um fato político. É um fato estético. Ele mora em alguns pesadelos, e - ao menos da arte não podemos fugir -  saiu ornado com penas de pavão, recentemente, no carnaval da Paraíso do Tuiuti.

Finalmente: em que estado se encontra o seu ódio ou a sua depressão?  

Relendo “Os Demônios”, imensa tragédia política de Dostoiévski, fico sabendo que o escritor dedicou este romance a uma série fatídica de suicídios ocorridos durante a Rússia dos Czares, na época, em plena derrocada. Era o niilismo chegando com sua carga terrorista, pronto a dar lugar, já mais próximo ao século XX, ao bolchevismo revolucionário e depois ao stalinismo. “Cortar cabeças é mais fácil do que ter ideias”, diz, num lapso de bom-senso irônico, um dos demônios dostoievskianos.

Numa entrevista, o psicanalista C. G. Jung diz que antes do início da segunda guerra mundial, seus pacientes já sonhavam com as batalhas. 

A história arromba os lares ou entra pelas frestas das portas, assim como uma das pragas do Egito.

No dia em que adentrei o teatro Vila Velha, escurecido por luzes laranjas laterais, eu tinha amanhecido meio triste e sonolento. Não sabia direito o que me fazia amolecer e cair da cama como um verme kafkiano, e depois rastejar até o banheiro carregando às costas uma casca de caramujo do tamanho de um planeta. Claro que aí haveria toda uma carga sentimentaloide dos últimos meses vividos por um artista representante da classe média cultural deste país desgovernado. Mas havia algo mais. 

Isso fui descobrindo aos poucos, dentro do próprio espetáculo. Em Espelho para Cegos, mais recente reposição do Teatro dos Novos, à medida que as mulheres de vestidas de preto falavam seus textos à minha frente, eu ia me dando conta que as pragas políticas a nos envenenar homeopaticamente eram ao menos três. Havia os caracóis que paralisavam as pessoas e saíam pelas suas bocas durante qualquer palavra proferida, deixando-as mudas; havia as borboletas que comiam pouco a pouco os corpos das pessoas, e havia o animal-chuva, que, caindo invisivelmente sobre tudo, deixava de pé somente as cascas: todos os conteúdos, as carnes, os ossos, os pensamentos, as palavras, corriam pelas bocas-de-lobo das ruas. No início da peça, no escuro, um cadeirante é consumido lenta e prazerosamente por um pequeno pet de cinco bocas. O animalzinho asqueroso vai subindo pelas suas pernas até atingir o sexo, e finalmente a cabeça. O falante atingiu o orgasmo total, fatal, final. Talvez ele gostaria de, simplesmente, desaparecer.

Espelho para Cegos, desde o título, anuncia a que tipo de espetáculo são chamados os espectadores. Se o realismo clássico pediria um espelho limpo e bem posicionado, para que uma burguesia em ascensão pudesse reconhecer ali suas próprias “humanidades”, Matéi Visniec, com seu absurdismo a la Ionesco, oferece-nos um espelho fosco, feito da mesma matéria das “nossas retinas tão fatigadas” (perdoa-me Drummond pelo furto). Mas talvez fosse Fernando Pessoa quem soubesse traduzir melhor essa sensação: “Somos dois abismos - um poço fitando o céu.”

Aqui não se oferecem promessas para o futuro, se é que podemos ver na aparição pan-africana-indígena-latina da mulher negra ao final como uma esperança no fim do túnel. Espelho para Cegos tenta dar conta de um mal-estar geral. Daquele mal-estar que Debord soube traduzir tão bem como “sem linguagem, sem conceito…”. Mas à arte não pode ficar reservado o papel da mudez. E se a ela lhe delegam isso, é no silêncio que irá gritar mais forte.

Os vários monólogos que compõem a costura da cena nunca tranquilizam, mas transformam em texto agonias, pesadelos, angústias, fantasmas e sensações que nós, em nossos momentos de vigília na noite, naqueles momentos fora da internet ou fora de algum coletivo de luta, virtual ou físico, quero dizer, na insônia ou no café da manhã, trazemos como uma casca de caramujo do tamanho de um planeta.

Não é fácil falar de política neste século. Tampouco entendê-la. Muito menos se posicionar confortavelmente de um lado ou de outro. Mas de alguma forma, a imagem que fica em minha cabeça não é apenas a do poder da mulher negra entoando seu canto de invocação às forças da dissidência mundial. Fui dormir com a imagem do corredor incansável, que, atravessando toda a cidade, termina, em pele viva e ensanguentado, à noite e nu, dentro do mar: “No mar é preciso entrar limpo, sempre”.  Eu diria: “No mar só se pode entrar só.”

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